sexta-feira, 3 de junho de 2016

Beleza e Misoginia (Sheila Jeffreys, 2005) - Introdução

    Título original: Beauty and Misogyny: Harmful Cultural Practices in the West
    Autora: Sheila Jeffreys
    Tradução: Laryssa Azevedo
     Sheila Jeffreys é professora adjunta no Departamento de Ciência Política na Universidade de Melbourne, onde ensina política sexual, políticas feministas internacionais e políticas gay. Ela é autora de cinco livros sobre história e política da sexualidade e é ativa no feminismo e nas políticas feministas lésbicas desde 1973.


     INTRODUÇÃO
     Nos anos 1970 uma crítica feminista à maquiagem e outras práticas estéticas emergiu em grupos de conscientização. A teórica feminista radical Catherine A. MacKinnon chamou de conscientização a “metodologia” do feminismo (MacKinnon, 1989). Nesses grupos mulheres discutiam seus sentimentos sobre elas mesmas e seus corpos. Elas identificaram as pressões da dominância masculina que faziam com que sentissem que deviam fazer dieta, depilação e usar maquiagem. Escritoras feministas rejeitaram a estética masculina que fez com que mulheres sentissem que seus corpos eram inadequados e se engajassem em práticas caras e demoradas que faziam com que sentissem que perderam sua autenticidade e que eram inaceitáveis de cara lavada (Dworkin, 1974). “Beleza” era identificada como opressão a mulheres.
     Nas últimas duas décadas a brutalidade das práticas estéticas executadas nos corpos femininos tornou-se muito mais severa. As práticas atuais requerem a ruptura da pele, derramamento de sangue e rearranjo ou amputação de partes do corpo. Corpos estranhos, no formato de implantes para os seios, são colocados embaixo da carne e próximos ao coração, os lábios vaginais das mulheres são cortados para chegar a um determinado tamanho, gordura é lipoaspirada das coxas e glúteos e algumas vezes injetada em outras partes como bochechas e queixos. A nova indústria da modificação corporal agora divide línguas femininas ao meio, criam buracos nos mamilos, próximos ao clitóris ou umbigo, para inserção de joias de “arte corporal” (Jeffreys, 2000). Esses incrementos são muito mais perigosos para a saúde da mulher do que as práticas comuns nos anos 60 e 70 quando a crítica feminista se deu. Era de se esperar, dessa forma, que essa crítica estivesse mais afiada e sua relevância fosse renovada em resposta ao coordenado ataque à integridade dos corpos das mulheres. Mas isso não aconteceu. Ao invés disso, a perspectiva feminista, que fez muitos milhares de mulheres evitarem a cultura da beleza e seus produtos foi desafiada nos anos 80 e 90.
     O desafio veio de duas direções. Feministas liberais, como Natasha Walter (Reino Unido) e Karen Lehrman (EUA), argumentaram que não havia nada errado com batom ou mulheres ficando mais bonitas com todos os produtos e práticas da cultura da beleza (Walter, 1999; Lehrman, 1997). O feminismo mesmo havia criado a escolha para mulheres, segundo elas, e permitiram às mulheres  “escolher” o batom, que antes era imposto a elas. Enquanto isso, a influência de ideias pós-modernas na academia levaram a discursos similares sobre “escolha”, geralmente na forma de “agência” vinda de algumas teóricas feministas e pesquisadoras (Davis, 1995). Proposições mais ousadas também foram feitas, como a ideia de que práticas de beleza poderiam ser socialmente transformadoras. Teóricas do feminismo pós-moderno como Judith Butler (1990), com suas ideias de performance de gênero, inspiradas na noção difundida entre teóricos queer de que as práticas de beleza da feminilidade adotadas por atores não convencionais ou escandalosamente poderiam ser transgressoras (Grosz, 1994). É em resposta a essa recente defesa das práticas de beleza contra a crítica feminista que este livro foi escrito.
     Em Beleza e Misoginia, eu sugiro que práticas de beleza não são sobre escolhas individuais das mulheres ou um “espaço discursivo” para a expressão criativa das mulheres mas, como outras teóricas feministas radicais argumentaram antes de mim, o mais importante aspecto da opressão contra a mulher. A filósofa feminista Marilyn Frye escreveu incisivamente sobre o que torna uma teoria feminista e por que não é suficiente contar com a certeza individual de mulheres que uma prática está ok para elas e para seus interesses.
Um dos grandes poderes do feminismo é que ele torna as experiências e vidas das mulheres inteligíveis. Tentar explicar os sentimentos, motivações, desejos, ambições, ações e reações de uma mulher sem levar em consideração as forças que mantêm a subordinação das mulheres em relação aos homens é como tentar explicar por que uma bolinha de gude para de rolar sem levar o atrito em consideração. A teoria feminista é sobre, de maneira geral, identificar essas forças somente... e mostrar a mecânica de suas aplicações nas mulheres como um grupo (ou casta) e para mulheres individualmente. A medida do sucesso da teoria é somente o quanto se pode explicar sobre o que não fazia sentido antes.
                                                                                   (Frye, 1983, p. xi)
     Neste livro eu tento identificar algumas das “forças que mantêm a subordinação das mulheres em relação aos homens” relacionadas a práticas de beleza. 
     Procuro explicar por que as práticas de beleza permanecem não apenas universalizadas 30 anos depois da crítica feminista ser feita, mas de muitas maneiras, mais extremas. Para isso eu uso algumas abordagens novas feitas para explicar essa intensificação da crueldade no que é esperado de mulheres no século XXI. Um ímpeto por trás da escrita deste livro é minha crescente impaciência para o viés ocidental do construtivo conceito de “práticas tradicionais/culturais nocivas”. Nos documentos das Nações Unidas (ONU) como o documento sobre “Práticas Tradicionais Nocivas” (ONU, 1995), práticas culturais/tradicionais nocivas são entendidas como prejudiciais à saúde das mulheres e adolescentes, realizadas para benefício masculino, criadoras de papéis sexuais estereotipados e justificáveis por tradição. Esse conceito é uma boa lente através da qual se pode examinar práticas que são nocivas a mulheres ocidentais – como práticas de beleza. Entretanto, práticas ocidentais não estão incluídas na definição ou entendidas pelas políticas feministas internacionais dessa forma. De fato há um pronunciado viés ocidental na seleção de práticas que se encaixam nessa categoria, entre as quais apenas uma prática ocidental, violência contra a mulher, está incluída (Wynter et al., 2002). O pressuposto é de que as culturas ocidentais não possuem práticas danosas, como mutilação genital, que poderiam gerar preocupação. Eu demonstro, em Beleza e Misoginia que práticas de beleza ocidentais, do batom à labioplastia se enquadram no critério e deviam estar incluídas na compreensão da ONU. A grande utilidade dessa abordagem é que ela não depende de noções de escolha individual; ela reconhece que atitudes por trás de práticas culturais danosas têm poder coercitivo e podem e devem ser modificadas.
     Outra abordagem que uso é enxergar o envolvimento masculino de duas formas nas práticas de beleza associadas a feminilidade: na travestilidade/transsexualidade, e no papel de designers e fotógrafos da indústria da moda. Neste livro estão pistas úteis sobre os significados culturais das práticas de beleza feminina, e formas nas quais são reforçadas, obtidas da análise do comportamento de homens que as praticam e de homens que as projetam. Eu utilizo percepções vindas de pesquisas em livros e na Internet sobre homens que obtém excitação sexual apropriando-se da feminilidade. Ao longo das décadas, desde os anos 70, as práticas masculinas de travestilidade/transsexualidade, que são a apropriação de roupas ou partes do corpo geralmente relacionadas a membros da classe sexual subordinada à supremacia masculina, ganharam extensa exposição pública e influência. A Internet permitiu que websites de praticantes individuais e grupos de apoio, bem como sites comerciais e pornografia direcionada a essas práticas masculinas proliferassem. Essa é uma boa oportunidade de demonstrar que práticas de beleza “feminina” não são nem naturais, nem exclusivas das mulheres. Também fornece muitas informações úteis sobre o que tais práticas representam para os homens, a excitação sexual causada pela subordinação ritualizada. Eu uso tais websites em alguns capítulos, analisando a criação da feminilidade por homens ou “transfeminilidade”. Com a percepção que tamanha análise oferece, argumento que essa prática masculina influencia na construção de práticas de beleza nocivas para mulheres através da influência de estilistas homens, fotógrafos e maquiadores que têm interesse em transfeminilidade.
     Outra abordagem que uso para investigar práticas de beleza é a análise da influência das indústrias da pornografia e da prostituição em sua criação. Sugiro que no final do século XX, o crescimento dessas indústrias teve um considerável efeito nas práticas de beleza exigidas a mulheres. Conforme essas indústrias cresceram e ganharam respeito através do desenvolvimento de novas tecnologias, como a Internet, e políticas governamentais indiferentes, as exigências culturais para a construção da beleza mudaram. O estigma da objetificação sexual à venda transformou-se em regra na indústria da moda. As pressões da pornografia criaram novas normas da moda para mulheres em geral, como implantes de silicone nos seios, depilação genital, alteração cirúrgica dos lábios vaginais, aparatos sadomasoquistas em forma de couro preto e vinil, e a exibição crescente do corpo, incluindo seios nus e nádegas.

     Beleza e Misoginia é concluído com um capítulo sobre o grau dos sérios danos físicos às mulheres e algumas categorias de homens que agora se normalizaram através da indústria do sexo e da celebração na arte e nos círculos da moda e através de redes online. Esse dano, eu sugiro, precisa ser entendido como automutilação passiva. Inclui a cirurgia cosmética, na qual o agente é o cirurgião plástico, e a indústria da modificação corporal, na qual os agentes são encontrados em estúdios de piercing. A partir dos anos 90, passaram a ser incluídas práticas extremamente severas como amputação, cujos agentes são cirurgiões, e outras práticas de sadomasoquismo nas quais partes do corpo são removidas. Algumas dessas práticas são sofridas por categorias vulneráveis de homens gays, bem como por mulheres. Não parece haver um limite para as variações de modificações corporais que membros da medicina estão preparados para realizar em troca de lucro. A defesa do “consentimento” da vítima está sendo empregada em circunstâncias tão dúbias que toda a noção de consentimento deve ser questionada. Meu argumento é que, consentimento à parte, limites deveriam ser construídos para conter os ataques à integridade dos corpos das mulheres e de alguns homens em nome da beleza ou da insatisfação com a aparência que estão ganhando espaço no início do século XXI. 

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