quinta-feira, 9 de junho de 2016

[CAPÍTULO 1, PARTE 1] Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys (2005)

CAPÍTULO 1
   O “CONTROLE DA CULTURA SOBRE O CORPO” - Práticas de beleza como agência feminina ou subordinação feminina.
     Nos anos 90 uma divergência fundamental emergiu entre escolas feministas a respeito da extensão das práticas de beleza ocidentais: se representavam o status subordinado das mulheres ou se poderiam ser vistas como a expressão da escolha ou agência femininas. Ideias emergiram em períodos particulares por causa de uma concentração de forças sociais que as fizeram possíveis. Nos anos 60 e 70 os novos movimentos sociais do feminismo, Black Power, políticas lésbicas e gays surgiram em resposta ao clima de esperança na possibilidade de transformações sociais. Esses movimentos sociais estavam abastecidos pela crença no construcionismo social e pela ideia de que uma transformação social radical era possível na busca pela igualdade social. Essas ideias sustentaram as profundas críticas feministas radicais à beleza que emergiram naquele período.
     Nos anos 80, entretanto, as ideias do feminismo radical, como as outras ideologias socialmente transformadoras foram tratadas com desprezo por ideólogos de direita que as chamaram de “politicamente corretas”. Uma nova ideologia de fundamentalismo de mercado foi desenvolvida para prover suporte ideológico para a expansão do recém desregulamentado capitalismo desenfreado. Segundo essa ideologia, o livre mercado, controlado apenas pelas escolhas de cidadãos poderosos, criaria uma estrutura social e econômica ideal sem a interferência do Estado. Cidadania, nessa visão, não era sobre direitos mas sobre responsabilidades, e o cidadão tinha o poder da escolha consumista (Evans, 1993).
     Nos anos 90 essas ideias sobre o poder de escolha influenciaram muitas feministas também. A ideia de que as mulheres eram coagidas pelo complexo moda/beleza para aderirem a práticas de beleza (Bartky, 1990), por exemplo, foi desafiada pela nova geração de feministas liberais que falavam sobre mulheres serem empoderadas pelo movimento feminista para escolher práticas de beleza que poderiam não ser mais vistas como opressivas. A nova linguagem que penetrou o pensamento feminista a partir de discursos sutis de direita foi a da “agência”, “escolha” e “empoderamento”. Mulheres passaram a ser consumidoras bem informadas que poderiam exercer seu poder de escolha no mercado. Elas poderiam escolher práticas e produtos. Feministas que continuaram a argumentar que as escolhas das mulheres foram severamente forçadas e feitas em um contexto de relativa ausência de poder feminino e dominância masculina foram criticadas com certa aspereza como “feministas vitimistas”; ou seja, que faziam de mulheres vítimas ao negar sua agência (Wolf, 1993).
     Nesse capítulo eu examino as ideias da crítica feminista radical à beleza e mostro como estas passaram a ser desafiadas tanto pelo novo feminismo liberal quanto por seu equivalente na academia, uma variedade de feminismo pós-moderno que enfatiza a escolha e a agência de maneira similar. Eu considero as tensões desenvolvidas entre os defensores da “escolha” e aqueles que enfatizavam o papel da cultura e da força na exigência da conformidade das mulheres com as práticas de beleza da feminilidade. Eu concluo com as ideias de algumas teóricas feministas e pesquisadoras que forneceram explicações convincentes sobre a coação que restringe as possibilidades de agência das mulheres nas práticas de beleza em culturas de dominância masculina fundadas na desigualdade/submissão sexual

     A CRÍTICA FEMINISTA À BELEZA
     As críticas apontaram que a beleza é uma prática cultural do tipo que é prejudicial a mulheres. Para escritoras como Andrea Dworkin a questão mais importante não era a dimensão na qual mulheres poderiam expressar agência e “escolha” no uso de maquiagem, mas quais os danos causados pelas práticas de beleza nas mulheres. Seu livro Woman Hating (Ódio a mulheres) é um bom exemplo da poderosa crítica que feministas radicais estavam fazendo à noção de beleza nos anos 70 (Dworkin, 1974). Ela analisa a ideia de “beleza” como um aspecto da forma pela qual mulheres são odiadas em culturas de supremacia masculina. Dworkin acusa a cultura do ódio a mulheres “pelas mortes, violações e violência” contra mulheres e diz que feministas “procuram por alternativas, formas de destruir a cultura como a conhecemos, reconstruindo-a como a imaginamos” (1974, p. 26).
Dworkin enxerga que as práticas de beleza geram extensos efeitos nocivos nos corpos das mulheres e em suas vidas. Práticas de beleza não apenas são perda de tempo, caras e dolorosas para a autoestima, mas:
     Padrões de beleza descrevem em termos precisos o relacionamento que uma pessoa tem com seu próprio corpo. Eles determinam sua mobilidade, espontaneidade, postura, jeito de andar, como ela deve colocar o corpo. Eles definem precisamente as dimensões de sua liberdade física.
                                                                                                               (Dworkin, 1974, p. 112)
     E, continuando, padrões de beleza também surtem efeitos psicológicos nas mulheres porque “a relação entre liberdade física e desenvolvimento psicológico, possibilidades intelectuais e potencial criativo é muito estreita”. Dworkin, como outras feministas radicais críticas da beleza, descreve o amplo alcance das práticas as quais mulheres devem seguir para estar de acordo com o que dita a beleza:
     Em nossa cultura, nenhuma parte do corpo feminino permanece intocada, inalterada. Nenhuma característica ou extremidade é poupada de arte, dor ou aperfeiçoamento. No cabelo se tinge, passa laquê, alisa ou faz permanente; sobrancelhas têm os pelos arrancados, são maquiadas com lápis, tingidas; olhos são delineados, se usa máscara, sombra; cílios são curvados ou falsos  - da cabeça aos pés, cada aspecto da face feminina, cada seção de seu corpo é sujeito a modificação, alteração.
                                                                                                                                                           (Dworkin, 1974, p. 112)
     Curiosamente esta lista omite a cirurgia cosmética, o que não faria sentido atualmente. Isso mostra o progresso que foi feito na transformação da cirurgia cosmética em simplesmente uma outra forma de maquiagem em 30 anos desde que Dworkin embarcou em sua análise (Haiken, 1997). Os outros elementos opressivos de beleza que Dworkin aponta são os “vitais para a economia” e “a essência da diferenciação nos papéis masculino e feminino, a mais imediata realidade física e psicológica de ser mulher” (Dworkin, 1974, p. 112). Práticas de beleza são necessárias para que os sexos sejam diferenciados, para que a classe sexual dominante possa ser diferenciada da subordinada. Práticas de beleza criam, da mesma forma que representam, a “diferença” entre os sexos.
     Sandra Bartky, que também desenvolveu suas ideias nos impetuosos dias dos anos 70 quando críticas profundas à condição da mulher incluíam uma análise da beleza, introduziu a questão do motivo pelo qual mulheres aparentemente poderiam “escolher”. Ela explica por que nenhum exercício óbvio da força é necessário para fazer as mulheres adotarem práticas de beleza. “É possível”, diz ela, “ser oprimida em maneiras que não precisam envolver privação física, desigualdade legal ou exploração econômica; pode-se ser oprimida psicologicamente” (Bartky, numa coleção de fragmentos previamente publicados, 1990, p. 23). Para apoiar o afirmado ela utiliza o trabalho do teórico anticolonial Frantz Fanon que escreveu sobre a “alienação psíquica” dos colonizados. A opressão psicológica nas mulheres, Bartky diz, consiste em mulheres sendo “estereotipadas, culturalmente dominadas e sexualmente objetificadas” (1990, p. 23). Ela explica essa dominação cultural como uma situação na qual “todos os itens na vida geral de nosso povo – nossa língua, nossas instituições, nossa arte e literatura, nossa cultura popular – são sexistas; isso tudo, em maior ou menor grau, manifesta a supremacia masculina” (1990, p. 25). A ausência de qualquer cultura alternativa na qual mulheres podem identificar uma forma diferente de ser mulher reforça práticas opressoras, “A subordinação das mulheres, dessa forma, por ser uma característica tão sutil em minha cultura, vai (se não for contestada) parecer natural – e por ser natural, inalterável” (1990, p. 25).
     O alicerce dessa dominação cultural é o tratamento das mulheres como objetos sexuais e a identificação das próprias mulheres com essa condição cultural.  Bartky (1990) define a prática de objetificação sexual assim: “uma pessoa é sexualmente objetificada quando seus órgãos sexuais ou funções sexuais são separadas do resto de sua personalidade e reduzidas ao status de meros instrumentos ou representados como se fossem capazes de representá-la.” (p. 26). As mulheres incorporam os valores da objetificação sexual masculina nelas mesmas. Catharine MacKinnon chama isso de ser “coisificada” na cabeça (MacKinnon, 1989). Elas aprendem a tratar seus próprios corpos como objetos separados delas mesmas. Bartky explica como isso funciona: um homem assovia, objetificando sexualmente a mulher, o que resulta em “O corpo em que eu habitava há apenas um momento com tanta facilidade agora inunda minha consciência. Eu fui transformada em objeto” (Bartky, 1990, p. 27). Ela explica que não é o suficiente para um homem simplesmente olhar secretamente para uma mulher, ele tem que fazer com que ela saiba que ele está olhando com o assovio. Ela deve “ter consciência de que eu sou uma ‘bela bunda’: Eu devo me ver como eles me veem” (p.27). O efeito desse comportamento controlador masculino é “Sujeitas ao olhar clínico do apreciador masculino, mulheres aprendem a avaliar a si mesmas antes e melhor” (Bartky, 1990, p. 28). Assim, mulheres se alienam de seus próprios corpos.
     O “complexo moda-beleza”, representando os interesses corporativos envolvidos nas indústrias da moda e da beleza, segundo Bartky, assumiu o controle que era da família e da igreja de “produção central e regulação da ‘feminilidade’” (1990, p. 39). O complexo moda-beleza promove a si mesmo para as mulheres ao se dizer “glorificando o corpo feminino e promovendo oportunidades para a satisfação narcisista” mas na verdade tem como objetivo “depreciar o corpo da mulher e golpear seu narcisismo” para que ela compre mais produtos. O resultado é que a mulher se sente constantemente deficiente e que seu corpo requer “alteração ou medidas heroicas para conservação” (p. 39).
     Dworkin e Bartky produziram suas críticas à beleza nos anos 70 e início dos anos 80. O mais poderoso trabalho feminista sobre beleza a ser publicado desde então, The Beauty Myth (O Mito da Beleza), de Naomi Wolf, fornece um exemplo interessante de como os tempos mudaram. Apesar de, ou talvez por causa do poder de sua crítica, Wolf sentiu que era necessário publicar, dentro de 3 anos, outro livro, Fire with Fire (Fogo com Fogo) (1993), que tirou a acidez de sua análise e a distinguiu das outras feministas radicais. Wolf argumenta que é exigido que as mulheres adotem práticas de beleza e que essa exigência tornou-se mais severa nos anos 80 como uma forma de retaliação contra a ameaça do movimento de libertação feminina e as oportunidades melhores, particularmente no trabalho, as quais as mulheres passaram a ter acesso. Como ela explica, “Quanto mais obstáculos legais e materiais são superados pelas mulheres, mais rigorosas, pesadas e cruéis imagens de beleza feminina surgem para nos afligir” (1990, p. 10). A análise de Wolf sugere que as mulheres são coagidas a adotar práticas de beleza pelas expectativas depositadas nas mulheres no ambiente de trabalho. As mulheres devem ter entrado no ambiente de trabalho em grande número nos anos 70, mas para não ameaçar os homens e para cumprir a exigência serem objetos para o deleite sexual de seus colegas homens, elas precisavam se envolver em dolorosos, caros e demorados procedimentos que não eram esperados de seus semelhantes homens se eles quisessem conseguir e manter empregos. Havia uma “qualificação estética profissional” que acompanhava a mulher no local de trabalho. Curiosamente, apesar da força da crítica de Wolf às práticas de beleza ela não as considerou como nocivas em si mesmas, mas apenas quando eram impostas ao invés de “escolhidas” pelas mulheres. Em seu último capítulo, “Beyond the Beauty Myth” (“Além do Mito da Beleza”) ela pergunta “Isso tudo significa que não podemos usar batom sem nos sentir culpadas?” (1990, p. 270);  e responde “Pelo contrário”. Ela explica:
     Em um mundo no qual mulheres têm escolhas reais, as escolhas que fazemos sobre nossa aparência serão encaradas ao menos como realmente são: nenhuma grande coisa.
     Mulheres devem poder se enfeitar com objetos bonitos sem pensar quando não existir dúvida que nós não somos objetos. Mulheres serão livres do mito da beleza quando nós pudermos escolher usar nossas faces e roupas e corpos como uma simples forma de expressão entre tantas outras.
(Wolf, 1990, p. 274)
     A análise de Wolf não sugere que exista um problema com o fato de mulheres, e não homens, terem que se envolver em práticas de beleza de forma alguma, mas que elas apenas não são livres para escolher fazer isso ou não. É essa falha em fazer as perguntas fundamentais sobre o motivo pelo qual as práticas de beleza são conectadas com as mulheres e por que qualquer mulher iria querer continuar com elas após a revolução, que faz de The Beauty Myth um livro feminista liberal ao invés de radical. Fire with Fire tornou claras suas referências liberais (Wolf, 1993). Nesse livro ela afirma que as mulheres não somente podem escolher usar maquiagem, mas também podem escolher ser poderosas. As forças materiais envolvidas na estruturação da subordinação feminina desapareceram para fazer da libertação um projeto de força de vontade individual, “Se nós não conseguirmos (...) atingir a igualdade no século XXI, será porque as mulheres escolheram em algum nível não exercer o poder que é nosso direito inato” (1993, p. 51).
     A descrição de Wolf de sua clara aflição devido às reações negativas do público ao radicalismo em seu livro sobre beleza pode ser uma pista do motivo pelo qual ela mudou tão rapidamente para uma completa feminista liberal. Depois da publicação, ela disse, “Meu trabalho envolvia me relacionar, em programas de TV e rádio, com pessoas que representavam as indústrias as quais eu estava criticando. Muitas estavam, compreensivelmente, com raiva e na defensiva. Apresentadores eram muitas vezes ríspidos... Eu estava muito desconfortável” (1993, p. 238). Sua experiência foi um choque porque “Eu sempre pensei em mim mesma como acolhedora, amigável e feminina”, e “após um vigoroso debate, eu ia para casa chorar nos braços do meu parceiro”. A experiência de Wolf mostra como é difícil criticar algo tão fundamental à dominância masculina na cultura ocidental como práticas de beleza. Sua reação a isso ajuda a explicar por que ela escolheu escrever Fire with Fire logo depois disso, um livro que parece contradizer a forte mensagem de The Beauty Myth. Ela estabelece uma inofensiva forma de feminismo e critica feministas radicais. Feministas radicais que fizeram campanha contra a violência masculina tornaram-se “vitimistas” que “se identificam com a impotência”, “julgam” particularmente “a sexualidade e aparência de outras mulheres” e são “antissexuais” (1993, p. 137). Ela procura acalmar o coração masculino que deve ter ficado transtornado com The Beauty Myth proclamando, “A atenção sexual masculina é o sol sob o qual floresço. O corpo masculino é meu chão e meu abrigo, meu eterno destino” (p. 186). Wolf compensou o que ela deve ter visto como uma loucura juvenil de escrever um livro sobre beleza que ameaçasse os interesses da dominância masculina. Ela recuou para uma firme distinção público/privado que isenta a área “privada” do escrutínio político, transformando-a em uma arena para o exercício de escolha das mulheres. 

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